
Como um aceno a tudo o que passou, num sorriso sincero e uma derrota aceite em mim. Por tudo o que por mim passou e se foi, por tudo o que em mim se sentiu e se diluiu na derradeira derrota de um ser. Como as nostalgias de uma infância despreocupada onde o mundo se resumia a um quilómetro quadrado de casa, desde á adolescência sem travões mergulhada num mundo cinzento. Adeus ás madrugadas de nevoeiro cerrado, metrópoles vazias e silênciosas. Adeus quartos pintados pela dor que nos acompanhou, despertares apáticos e solitários. Não há nada mais que possa esperar para recear, acaba aqui. De nariz bem erguido e um pequeno e irónico sorriso na face, à espera daquele último segundo, num olhar distante: Acabou.
Todas as roupas que eu já vesti e todas as recordações que tinha quando as vestia de novo, em todos os lugares que estive... Todos os álbuns que eu já ouvi, num carro sem destino ou na minha cabeça a caminho de algum sítio... Todas as pessoas que já cumprimentei, olhei e sorri, como qualquer pessoa na rua, as pessoas que poucas vezes me cruzava até as poucas que me conheciam realmente... Todos os escolas que frequentei, todos os autocarros que andei, numa rotina constante até ao seu último dia... Tudo isso presente na consciência tão intensamente... Vivi tão rápido. Tudo isso acabou.
Agora sou capaz de afirmar que me tornei um espectador deste teatro. Farto de conhecer figurinos com as suas fatiotas que variam de tamanho de tecido, padrões e cores com o passar dos anos. Farto dos cenários que se repetem vezes e vezes sem conta, restando apenas eu, caminhando entre tudo e todos com mil e uma memórias enquanto tudo o resto, seja em que local for, se recolhe para aquilo que chamam casa para recomeçar tudo de novo amanhã. Como a tentativa de se aproximar daquela rapariga mesmo que essa seja comprometida, a ânsia de comprar um carro novo para substituir o que foi destruído, a vontade de jogar aquele jogo, comprar aquele telemovel, comer aquela comida, ouvir aquela música, ver aquele filme, humilhar aquela pessoa, foder aquela amiga daquele amigo. Ou então estudar, para estabelecer uma vida e casar com alguém exactamente como nós, com um curso melhor que o nosso, para criar descendência, passar a tradição religiosa ao filho enquanto a mulher fornica o patrão e o marido passa férias com os amigos e traí a mulher com uma qualquer. E em casos raros, amar, para atravessar a vida de mão dada e um sorriso estampado no rosto, pelo peito se encher de uma felicidade doce e terna, que nos lembra todos os beijos, todos os olhares, naquela tarde, naquela noite, em casa, enquanto faz frio lá fora, no mar, enquanto o sol cai. Que nos lembra o toque da pele, uma na outra, em mais uma cama, as coxas e os troncos, as respirações e os olhos apaixonados. Tão apaixonados como o caminhar, para qualquer lado, no desejo de encontrar um canto para criar um mundo completamente á parte. Uma casa, um apartamento com duas divisões, as roupas rascas, os vinyls antigos, na baixa de uma cidade qualquer, numa vida em pleno conforto com a nossa pessoa, amando tão naturalmente e intensamente, quem dorme abraçado ao nosso corpo quando acordámos todos os dias. Por reconhecer que a pessoa ao lado é a melhor pessoa que se possa conhecer, que nos sente da mesma forma e que quando olha ao seu redor, o olhar é o mais bonito e querido que possa existir perante tudo o resto.
Tudo existe. Eu observo, após a derrota. Sabendo como tudo funciona, como tudo nasce, vive e morre. E quando os dias são a sucessiva repetição do que há para sentir, escalamos a multidão adormecida até ao topo e de nariz bem erguido num pequeno e irónico sorriso na face, ficámos á espera daquele último segundo.