sexta-feira, outubro 06, 2006

Tristeza

A cidade estava bonita. Molhada e cinzenta.
O sol não apareceu e os carros andaram o dia todo com faróis ligados. O fumo das castanhas surgia de todas as ruas de onde entravam e saíam pessoas com roupa de inverno. Os autocarros seguiam o seu curso, os bombeiros acorriam a pedidos de socorro e a polícia patrulhava as ruas. E no meio de tudo isso, lá caminhavam eles.
Uns com um olhar preso no chão, outros que rasgam a multidão como a desafia-la e ainda os que vão-se deixando caminhar pensando mil e uma coisas, divagando na sua droga de eleição. Há quem se sente em qualquer lado, olhando quem passa e quem se esconda no beco mais abandonado, e numa ou outra ocasião há sempre uma senhora de família que passa e como um lamento num tom superior diz: tristeza. E por mais desconhecidas que lhe sejam as verdades, a senhora tem a razão. Nós somos quem costumam ver nas vossas ruas, mal vestidos, imprevisiveis, deliquentes, os que nunca serão nada na vida, para sempre jovens adultos. Mas nós optámos por não ser seja o que for perante a vida que é rápida demais para ser vivida, sem tempo para sentir realmente o que é viver. Somos aqueles que nada dizem e nada cobram, mas conscientes da falta de personalidade, da falta de intelecto e ideais de uma sociedade unida apenas por dinheiro, leis e horários. Nós não somos pessoas, muito menos gente, somos individuos que lutam, mesmo que o façam dentro do seu próprio pensamento, perante o mundo como ele se tornou. Material. Superficial. Preconceituoso. Enfadonho. Somos quem somos e como somos porque somos livres. As nossas roupas não foram feitas para impressionar, a nossa orientação sexual não foi feita para julgar, a nossa música não foi feita para chocar, a nossa maneira de ser não foi feita para receber qualquer tipo de holofote, tudo provém da naturalidade, da espontaneidade, da indignação, da melancolia, da apatia, do desespero... Nós somos a tristeza em pessoa. Somos a elite que não foi feita para vencer, a elite que nunca fora referenciada ou planeada, a elite moldada pelo tempo e por tudo o que ele trouxe e levou.
Somos a elite derrotista de quem nunca ninguém falou.
Partilhámos apenas cidades e acabamos por caminhar a mesma rua. A que transpira angústia e nos lá prende. Vagueamos pela cidade quando todos dormem, sentindo no íntimo a beleza que cada rua cerrada de nevoeiro numa cidade adormecida oferece e dançamos como se fossemos cair a qualquer momento numa adrenalina descomunal. Lutamos em silêncio por uma liberdade que desconhecem, sofremos em silêncio por um vazio que não sentem. E que se fodam os sexistas, que se fodam os homofóbicos, que se fodam os pedófilos, que se fodam os preconceituosos, que se fodam os egoístas, que se fodam os arrogantes, que se fodam as políticas, que se fodam as religiões, que se fodam as críticas, que se fodam os falsos, que se fodam os invejosos, que se fodam os gananciosos, que se fodam os que pensam o que for sem saberem porque o pensam ou que defendem algo que inconscientemente contradizem. E que se foda a vida como a conhecem.
Não existimos em grupo, não marchamos ou cantamos, estamos todos espalhados em silêncio, mas existimos, somos reconhecidos pelo olhar. Porque caminhámos nas vossas ruas e quando olhamos nos vossos olhos, gritámos num pensamento indignado: tristeza!

6 comentários:

Anónimo disse...

e no entanto (somos?) os k vivemos realmente. eles sao so tristeza. (nós?) temos estrelas e cores nos olhos, mas eles nao as conseguem ver. quem vive reconhece se por isso, pelo olhar estrelado e colorido. e os outros apenas conseguem ver tristeza nele. talvez pk a verdade os magoe demasiado. e foi um dia normal...

Klatuu o embuçado disse...

YA, QUE SE FODAM!!

P. S. Ainda que bem tás vivo... ;) anda por aí muito pessoal a atirar-se para fora da vida...

Abraço.

Paulo Brás disse...

"bonjour, tristesse!"


(o apeles.)

um cavalo ou um boi disse...

Acho que devias colocar os teus textos em todos os postes da rua, em letras grandes. Porque é tão preciso.
E não digo mais nada, que não tenho palavras. Só os sentimentos que deslizam para o vazio.

Anónimo disse...

eu amo-te porque tu...tu (!)...és tudo.

Lord of Erewhon disse...

É lá! :)=