
Viajo de autocarro entre desconhecidos que evitam sentar-se ao meu lado e sem que dê por isso, dou comigo fora do autocarro, no meio da cidade, observando o vazio. Acendo um cigarro e sigo sem rumo. Os músicos de rua são sempre os mesmos e já me abordam sorridentes, pedindo um cigarro, espalhando o conforto da apatia. Perdi algures a vontade de fugir com eles.
Abstraio-me do que me cerca e concentro-me nos distantes sons citadinos que mais parecem uma fita que é tocada vezes sem conta sem que quem caminha na rua se aperceba, tal a pressa de viver. Dirijo-me ao mesmo café de sempre e peço um chocolate quente e é com ele que me sento sozinho numa mesa enquanto que à minha volta várias pessoas se sentam, levantam e conversam. Acendo mais um cigarro enquanto bebo o chocolate lentamente e olho para a cadeira vazia à minha frente. Sinto a falta de quem não está nem nunca lá esteve. A solidão invade-me quando me apercebo que assim como vários velhos que se sentam em mesas ao meu lado abandonam as suas casas em mais uma tarde para passarem num local que se possam sentir menos sozinhos, também eu abandono aquilo que teimo em chamar casa para queimar cigarros nas ruas que se encontram fora deste café. E sinto que não me resta vida, como sinto quando olho os velhos nos olhos. Mesmo ali, continuo sozinho. Sinto que não há ninguém. A cadeira está vazia e continua enquanto queimo tempo e tabaco esperando por algo ou alguém que nunca chega. A sensação de abandono traz com ela a velha angústia que tanto corrói. Aparece o desespero de uma vida indesejada, sem rumo e solitária. Tantos sorrisos que neste momento se esboçam pelo mundo fora. Fugiram-me aqueles que me eram dados. Arde! Acendo mais um cigarro e perco-me numa viagem introspectiva. Encontro a dor de existir. Não tenho nada para além de tempo para matar e cigarros para fumar, o chocolate quente já acabou. Aqueceu o Inverno que há em mim e adoçou a amargura do meu olhar por breves instantes, nada mais. O mundo gira enquanto que a outra cadeira me faz sentir a falta de tudo aquilo que não tenho. Deixo os minutos passar por mim naquele lugar em que as vozes se sobrepõem umas nas outras num som quase insuportável. Pergunto a mim mesmo o que fui e o que tive até hoje para tentar descobrir quem sou e o que tenho. Hoje sou alguém que se senta numa mesa de café a deixar o tempo passar, sem o conforto de sentir as suas inspirações e expirações automatizadas.
Abandono o café e piso a calçada de granito que me leva à livraria para ler as páginas de quem gostaria de ter conhecido se tivesse vivido quatro décadas antes. Viajaria com ele se ele assim o quisesse como tanto ele fez e partilharia a visão do mundo que aqueles que julgam pensar nunca irão ter. E depois de ler tantas páginas de quem me mostra um mundo que nunca irei conhecer saio para estas ruas, com algo no olhar que faz com quem se cruze comigo me olhe com outro olhar. Talvez leve raiva, angústia, talvez algo indefinível e abstracto para quem me olha nos olhos e me vê caminhar sem vida.
Por isso caminho novamente entre esta multidão, de cigarro e caderno na mão, dando volta a quarteirões, tentando descobrir um beco para que mais tarde possa descansar. Cruzo-me com velhos magros com óculos e bigode, de fato e chapéu que por segundos confundo com Fernando Pessoa a caminho de um bar para tomar absinto até que me sento no chão encostado a uma parede numa ruela qualquer para acabar o cigarro.
E aí, enquanto observo o azul do céu a desaparecer num crepúsculo admirável, ouço os passos da pouca gente que se cruza por quem se sente tão deslocado do mundo que observa. No vidro ao meu lado vejo o reflexo de alguém sentado no chão, com o cabelo a cobrir o rosto, com a sua camisa velha e calças rasgadas, passando por ele sombras que caminham deixando o eco dos passos neste beco deserto. Vejo alguém que não se vê em lado nenhum, nem mesmo dentro dele mesmo. Abre-se apenas o caderno para escrever mais uma cena deste grande teatro.