segunda-feira, setembro 25, 2006

Hoje é o melhor dia para morrer

Hoje é o melhor dia para morrer. Nada melhor como me despedir em glória na minha derrota.
Como um aceno a tudo o que passou, num sorriso sincero e uma derrota aceite em mim. Por tudo o que por mim passou e se foi, por tudo o que em mim se sentiu e se diluiu na derradeira derrota de um ser. Como as nostalgias de uma infância despreocupada onde o mundo se resumia a um quilómetro quadrado de casa, desde á adolescência sem travões mergulhada num mundo cinzento. Adeus ás madrugadas de nevoeiro cerrado, metrópoles vazias e silênciosas. Adeus quartos pintados pela dor que nos acompanhou, despertares apáticos e solitários. Não há nada mais que possa esperar para recear, acaba aqui. De nariz bem erguido e um pequeno e irónico sorriso na face, à espera daquele último segundo, num olhar distante: Acabou.
Todas as roupas que eu já vesti e todas as recordações que tinha quando as vestia de novo, em todos os lugares que estive... Todos os álbuns que eu já ouvi, num carro sem destino ou na minha cabeça a caminho de algum sítio... Todas as pessoas que já cumprimentei, olhei e sorri, como qualquer pessoa na rua, as pessoas que poucas vezes me cruzava até as poucas que me conheciam realmente... Todos os escolas que frequentei, todos os autocarros que andei, numa rotina constante até ao seu último dia... Tudo isso presente na consciência tão intensamente... Vivi tão rápido. Tudo isso acabou.
Agora sou capaz de afirmar que me tornei um espectador deste teatro. Farto de conhecer figurinos com as suas fatiotas que variam de tamanho de tecido, padrões e cores com o passar dos anos. Farto dos cenários que se repetem vezes e vezes sem conta, restando apenas eu, caminhando entre tudo e todos com mil e uma memórias enquanto tudo o resto, seja em que local for, se recolhe para aquilo que chamam casa para recomeçar tudo de novo amanhã. Como a tentativa de se aproximar daquela rapariga mesmo que essa seja comprometida, a ânsia de comprar um carro novo para substituir o que foi destruído, a vontade de jogar aquele jogo, comprar aquele telemovel, comer aquela comida, ouvir aquela música, ver aquele filme, humilhar aquela pessoa, foder aquela amiga daquele amigo. Ou então estudar, para estabelecer uma vida e casar com alguém exactamente como nós, com um curso melhor que o nosso, para criar descendência, passar a tradição religiosa ao filho enquanto a mulher fornica o patrão e o marido passa férias com os amigos e traí a mulher com uma qualquer. E em casos raros, amar, para atravessar a vida de mão dada e um sorriso estampado no rosto, pelo peito se encher de uma felicidade doce e terna, que nos lembra todos os beijos, todos os olhares, naquela tarde, naquela noite, em casa, enquanto faz frio lá fora, no mar, enquanto o sol cai. Que nos lembra o toque da pele, uma na outra, em mais uma cama, as coxas e os troncos, as respirações e os olhos apaixonados. Tão apaixonados como o caminhar, para qualquer lado, no desejo de encontrar um canto para criar um mundo completamente á parte. Uma casa, um apartamento com duas divisões, as roupas rascas, os vinyls antigos, na baixa de uma cidade qualquer, numa vida em pleno conforto com a nossa pessoa, amando tão naturalmente e intensamente, quem dorme abraçado ao nosso corpo quando acordámos todos os dias. Por reconhecer que a pessoa ao lado é a melhor pessoa que se possa conhecer, que nos sente da mesma forma e que quando olha ao seu redor, o olhar é o mais bonito e querido que possa existir perante tudo o resto.
Tudo existe. Eu observo, após a derrota. Sabendo como tudo funciona, como tudo nasce, vive e morre. E quando os dias são a sucessiva repetição do que há para sentir, escalamos a multidão adormecida até ao topo e de nariz bem erguido num pequeno e irónico sorriso na face, ficámos á espera daquele último segundo.

sábado, setembro 16, 2006

"Então senhor Bruno, como passou?"

Lerei em voz alta, mesmo que o teu silêncio me magoe:

Estou á espera que me batam à porta e me esperem com um sorriso seguido de um abraço apertado em vão. Que venha a dor de tudo perder. Por mais que adormeçamos com o desejo de amanhã ver alguém que desapareceu, esse alguém nunca voltará. A voz, o olhar, o sorriso, os gestos, nada voltará. Apenas a saudade dolorosa de tudo o que se perdeu.
O dia nasceu calmo e silencioso, nem os passáros cantaram, nem o sol nasceu radiante e com vida. Limitou-se a nascer, na mesma serra de sempre e com o tempo ergueu-se lentamente. Nem estava quente nem frio, tudo seguia o seu curso silenciosamente. Só o teu nome, vezes sem conta, escrito na parede negra do meu pensamento. E o peso no peito, como se o coração estivesse a cair no vazio que hoje me criaste. Volto a ser criança e vejo-te da janela da minha antiga cozinha, a caires da tua bicleta e com o teu queixo ensanguentado a chorar. Com um avental estancam o teu queixo e abraçaste à cintura da minha avó em dores. E como um sonho, visito-te com jogos e ficámos tardes a jogar mega drive em tua casa, por vezes amuados um com o outro, por alguém ganhar mais vezes. E voltámos a lanchar, em cozinhas antigas o pão que o padeiro trazia a meio da tarde e um copo de leite com chocolate que na altura nos satisfazia mais do que qualquer coisa. Fomos vendo os nossos traços a desenvolverem-se, eu sempre fui o magrinho que não conseguia engordar. Caminhámos sempre juntos para o meio de rapazes e raparigas em diversas escolas que o tempo tornou-os como nossos conhecidos. Tu eras sempre o guarda redes e eu alguém que tentava pontapear uma bola.
Nunca me chateei contigo. Nunca. Nem quando não passávamos de crianças com um mundo por conhecer ou adolescentes com um mundo que lhes caía em cima. Mudámos de penteados, ambientes, conhecidos e amores, mas continuámos sempre os mesmos. Nem o tempo foi capaz de quebrar o que inconscientemente construímos. Apanhávamos sempre o mesmo autocarro, caminhávamos sempre a mesma rua, umas vezes com conversas mais semelhantes a outras mas nunca fomos capazes de nos afastar. Mexe-te! Levanta-te daí! Deixa-me apodrecer em mim mesmo como sempre tão bem o soube fazer mas não me persigas em sonhos que me acordem durante a noite.
Mexe-te! Ouve-me! Mexe-te! Pára com esse teu silêncio insurtecedor! Quero que me convides para mais uma partida de bilhar e me afastes das trevas que eu próprio semeei. Mas mexe-te! E não me abandones aqui enquanto quieto caminhas em direcção à terra que te comerá. Acorda e ri-te das lágrimas que nunca me viste derramar por ti ou de tudo aquilo que nunca te cheguei a dizer. Ninguém merece que o seu funeral seja no próprio aniversário.
E tenho tantas fotografias tuas cá dentro. Como tu, ao longe em mais uma manhã mergulhada num nevoeiro, a chamar por mim, de mochila ás costas, a caminho da paragem do autocarro. Ou o segundo antes de desviarmos o olhar um do outro, quando a estrada nos dividia cada um para sua casa. O teu rosto. Umas vezes mais sorridente que outras. Até mesmo quando segurava o teu corpo sem força, enquanto vomitavas depois de mais uma noite cheia de alcóol. As festas de aniversário que tinhas, quando éramos mais novos e recebias sempre algo que ansiavas por parte dos teus pais. A felicidade intensa presente no teu e no meu olhar, quando riamos de alguma piada que criavamos ou de quando recordávamos algum programa que tinhamos visto. Mesmo os teus sermões sarcásticos quando ias ter comigo atrás de um pavilhão qualquer enquanto fumava e faltava ás aulas.
"Então senhor Bruno, como passou?"
"És um anjinho!"
"Vai uma aposta?"
"Os teus crepes são uma merda"
"Ouvi dizer que hoje à tarde vens a minha casa"
"Eu espero por ti na paragem"
Uma imensidade de sons e imagens guardadas em mim. Partilhámos o mesmo sangue. Partilhámos uma vida. E isso, nunca me vou esquecer. Só não queria estar aqui para te ver partir antes de mim.
O céu estava limpo e nenhum pássaro ou qualquer nuvem se atreveu a rasgá-lo. Não haviam borboletas ou flores por desabrochar. Não se viam casais de mão dada passeando, nem se ouviam carros ou risos distantes de criança inocentes. Foi um dia de luto por ti.

segunda-feira, setembro 11, 2006

O dia está a começar de novo

O dia está a começar de novo, mesmo que para mim o sono não tenha chegado.
Vou observando o reflexo do meu rosto, sereno e penetrante, que tanto esconde, enquanto o cigarro se queima sozinho entre os dedos agora adultos e com muitas histórias por contar. Tenho dentro de mim o suficiente para me destruir e no entanto vou vivendo comigo mesmo, destruindo-me num silêncio como este. Sei de cor todas as razões pelas quais sou quem sou e quem nunca serei. Sinto apenas a falta de um lugar que não me conheça como hoje sou ou me faça lembrar de mim mesmo, ao contrário das ruas que todos os dias caminho.
Vou enlouquecendo, numa postura que se ridiculariza a si mesma. E tento escapar a mim mesmo em noites como esta, nunca com um destino traçado. Como neste escritório de uma fábrica onde vou anotando tudo o que existe para sentir em mim e em meu redor.
Todos dormem, uns mais descansados que outros, assim como quem dorme neste preciso momento atrás desta cadeira, no chão, gasto, por tudo o que viveu até hoje. Todos, de alguma maneira, encontram sempre um caminho que hoje vejo como uma mentira que todos preferem acreditar. E até as cores da cidade, as roupas que visto, os rostos desconhecidos com que me cruzo, a maneira como me olho e todas as imagens que levo em mim como memórias, levam para longe a paz que preciso.
Não me entristece o facto de todos os dias terem o mesmo sabor amargo, mata-me a certeza que todos eles me dão e nenhum contradiz. Limito-me a recordar tudo o que passou como um filme, onde hoje sou o espectador que se emociona sempre que se vê a si mesmo numa terceira pessoa que caminha em direcção ao fim, que destrói tudo o que possa ter construido e lamenta, num silêncio doloroso, pela perda da força que precisa para lutar mais um dia. Desistiu e como um castigo, caminha com essa derrota, num peso que aumenta à medida que vê o tempo passar.
Cansa-me pensar no que existe lá fora. Fui conhecendo e compreendendo como tudo é e funciona, de tal maneira, que a realidade me roubou de mim mesmo. Não culpo nada nem ninguém, a não ser eu mesmo, por ter criado o vazio que substituiu tudo o que todos os anos que por mim passaram, trouxeram. Desde os primeiros sorrisos inocentes aos últimos dias que vivi intensamente. Entre essa linha de tempo, existe uma vida que se perdeu. E hoje sou alguém que não espera seja o que for de qualquer coisa, até de si mesmo. Sou aquele que se perdeu.
Tudo o que tocou morreu. Viveu, mas o tempo matou-lhe a vivacidade. Ficou apenas com o seu corpo cansado e a sua mente derrotada. Pagou com a vida quando sentiu a inocência desaparecer. Porque um dia, sem o saber, acreditou que mudaria o mundo. Mundo, que no fim, acabou por o consumir, por tudo o que viu, sentiu e viveu. Será para sempre um livro que fechou e que contará sempre a história mais triste que poderá ser lida.

terça-feira, setembro 05, 2006

Lambendo feridas

Como um animal, quando as luzes se apagam, fica ele lambendo as feridas.
Um vai e vem de sentimentos percorrem o corpo gasto e os gritos são tão intensos que assustam a pobre alma que por ele passa. Os olhos espelham um desespero que se dilui com raiva e a ânsia de viver. O cabelo que fora arrancado com os próprios membros ainda paira no ar e uma respiração ofegante faz-se ouvir. As imagens percorrem-lhe o cerebro e os musculos contraem-se involuntáriamente, adivinhando-se mais uma explosão de dor.
Ouvem-se vozes e sentem-se toques, invocam-se presenças e os punhos cerram-se até o sangue banhar o chão. Não existem portas nem janelas para fugir ao destino que se traçou, apenas a certeza que amanhã terá que lidar com o fantasma que criou de si mesmo.
Brilham os olhos naquela escuridão dolorosa, enquanto se lambem feridas, como um animal.