quinta-feira, outubro 19, 2006

Scentless Apprentice

Vá lá, continuem. Mas deixem-me com a loucura que faz o meu sangue ferver. Sou a doença contagiosa que apodrece o vosso sistema, o grito que ouvem na rua pela madrugada, o partido que nunca quiseram para os vossos filhos. Acreditam na liberdade? Mostrem-ma! Não a conhecem!
Não vos peço uma moeda nem preocupação, meus queridos. Mas já chegaram ao i de integridade no vosso dicionário de bolso? Olhem para mim! Olhem bem para mim e façam aquilo que fazem melhor: Julguem-me! E riam ou lamentem. Pois eu nasci para quebrar o conceito de normalidade. Sou o vosso anormal preferido. O rei dos anormais. De corpo e mente. Agora usem-me. Mostrem-me a todos que conhecem como o objecto de pura inutilidade e orgulhem-se disso. Ou afastem-se só para não sentirem o meu cheiro. Conheço todos os vossos pequenos segredos. Sobretudo que têm determinados segredos que não querem que se revelem perante todos. E reconheço que desconhecem a vossa ignorância, que no fundo ainda vos torna estranhamente superiores.
Mas eu não tenho nada a esconder. Ofereço-vos o sorriso mais irónico. E isso dá-me o direito de gritar obscenidades nos vossos ouvidos. De fixar o meu olhar no vosso como se quisesse alguma coisa vossa. Porque serei sempre a voz acima de qualquer lei. A voz da livre expressão do individuo.
E quando me acharem a criatura mais nojenta que conseguem imaginar, lembrem-se que todos vocês já acariciaram o vosso próprio sexo e utilizaram as mesmas mãos para tocarem em tudo e todos à vossa volta.
Tenham um bom dia.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Tristeza

A cidade estava bonita. Molhada e cinzenta.
O sol não apareceu e os carros andaram o dia todo com faróis ligados. O fumo das castanhas surgia de todas as ruas de onde entravam e saíam pessoas com roupa de inverno. Os autocarros seguiam o seu curso, os bombeiros acorriam a pedidos de socorro e a polícia patrulhava as ruas. E no meio de tudo isso, lá caminhavam eles.
Uns com um olhar preso no chão, outros que rasgam a multidão como a desafia-la e ainda os que vão-se deixando caminhar pensando mil e uma coisas, divagando na sua droga de eleição. Há quem se sente em qualquer lado, olhando quem passa e quem se esconda no beco mais abandonado, e numa ou outra ocasião há sempre uma senhora de família que passa e como um lamento num tom superior diz: tristeza. E por mais desconhecidas que lhe sejam as verdades, a senhora tem a razão. Nós somos quem costumam ver nas vossas ruas, mal vestidos, imprevisiveis, deliquentes, os que nunca serão nada na vida, para sempre jovens adultos. Mas nós optámos por não ser seja o que for perante a vida que é rápida demais para ser vivida, sem tempo para sentir realmente o que é viver. Somos aqueles que nada dizem e nada cobram, mas conscientes da falta de personalidade, da falta de intelecto e ideais de uma sociedade unida apenas por dinheiro, leis e horários. Nós não somos pessoas, muito menos gente, somos individuos que lutam, mesmo que o façam dentro do seu próprio pensamento, perante o mundo como ele se tornou. Material. Superficial. Preconceituoso. Enfadonho. Somos quem somos e como somos porque somos livres. As nossas roupas não foram feitas para impressionar, a nossa orientação sexual não foi feita para julgar, a nossa música não foi feita para chocar, a nossa maneira de ser não foi feita para receber qualquer tipo de holofote, tudo provém da naturalidade, da espontaneidade, da indignação, da melancolia, da apatia, do desespero... Nós somos a tristeza em pessoa. Somos a elite que não foi feita para vencer, a elite que nunca fora referenciada ou planeada, a elite moldada pelo tempo e por tudo o que ele trouxe e levou.
Somos a elite derrotista de quem nunca ninguém falou.
Partilhámos apenas cidades e acabamos por caminhar a mesma rua. A que transpira angústia e nos lá prende. Vagueamos pela cidade quando todos dormem, sentindo no íntimo a beleza que cada rua cerrada de nevoeiro numa cidade adormecida oferece e dançamos como se fossemos cair a qualquer momento numa adrenalina descomunal. Lutamos em silêncio por uma liberdade que desconhecem, sofremos em silêncio por um vazio que não sentem. E que se fodam os sexistas, que se fodam os homofóbicos, que se fodam os pedófilos, que se fodam os preconceituosos, que se fodam os egoístas, que se fodam os arrogantes, que se fodam as políticas, que se fodam as religiões, que se fodam as críticas, que se fodam os falsos, que se fodam os invejosos, que se fodam os gananciosos, que se fodam os que pensam o que for sem saberem porque o pensam ou que defendem algo que inconscientemente contradizem. E que se foda a vida como a conhecem.
Não existimos em grupo, não marchamos ou cantamos, estamos todos espalhados em silêncio, mas existimos, somos reconhecidos pelo olhar. Porque caminhámos nas vossas ruas e quando olhamos nos vossos olhos, gritámos num pensamento indignado: tristeza!