sexta-feira, maio 18, 2007

Abre lá a merda da porta

Estava a fazer-se tarde, mas o ambiente acolhedor da sala teimava em prender os corpos agora lentos e cansados. Mas fervilhando vida. Fumava-se um último cigarro porque ele tinha que ir para casa. A televisão sem som, repetia vezes sem conta anúncios a facas de cozinha e a aparelhos musculares. Mais um serão se tinha passado naquela sala. As vozes, agora ausentes, davam espaço ao silêncio que parecia flutuar no ar em ondas que transmitiam um relaxar mental. Tocou na mão do corpo adormecido e saiu.
Outro dia alguém tocou à campainha.
É o pai natal - ironicamente anunciou.
Havia incenso que se deixava queimar na entrada quando a mulher abriu a porta. Ele trazia um novo álbum na mão e tranquilidade no olhar. Sentaram-se na pequena cozinha a falar sobre pormenores para muitos irrelevantes dos dias em que têm vivido, sorrindo e bebendo, para suavizar a garganta da nicotina. Haviam já luzes amareladas no céu ainda violeta quando o primeiro copo de vinho se encheu. Da janela ouvia-se o som citadino de uma baixa comum. Lá dentro no gira discos, rodava a shaman's blues. Mais um serão se avizinhava.
Agitadas, despreocupadas e alegres ou serenas, preocupantes e sentidas, discutiam-se opiniões e confessavam-se memórias enquanto os olhares traziam um conforto comum. Partilhavam as mesmas paixões com a mesma paixão. Ambos admiravam a presença que sentiam à sua frente nos seus bonitos e subtis pormenores. Visitavam o café da esquina ou bar da avenida, por mera curiosidade pela agenda cultural do mês. Voltavam a uma das casas para relaxar. Consumiam-se substâncias para as ocasiões certas. Para se abrirem portas fechadas em viagens ao subconsciente, alteração ou aumento de sentidos, ou simplesmente, para fugir ao tabaco. A música preenchia a divisão de tal forma, que parecia tocar nas paredes e chocar contra os corpos, deixando-os agitados e relaxados simultaneamente. As luzes ganhavam novas formas e outras intensidades enquanto o espaço físico perdia a sua noção racional. A consola de jogos ligava-se para sessões de risos compulsivos e séries televisivas eram vistas com interesse. Visitavam casas alheias tropeçando e rindo nos corredores, trazendo ou não, companhias. Viajavam na cidade adormecida, conduzindo ao som que lentamente criava imagens na mente alterada. Até a hora da despedida.
Abre lá a merda da porta - gritava ela ansiosa num tom de riso ao comunicador.
Sempre atrasado, vestia-se ele à pressa para um concerto ou para uma peça de teatro. Mas antes, uma ida à mercearia.
Era amor.
Eram amigos.

segunda-feira, maio 14, 2007

Visita

Um dia, o corpo despertou e decidiu guiar-se pelo desejo.
Abriram-se portas para realidades desconhecidas.
O pano desceu.
- Agridoce - disse a voz.
A praia estava coberta de corpos que se deixaram queimar.
Por cobardia.
- O mar desistiu. Mas culparam a lua.
E todo o planeta se tornou num lago.

Rostos familiares, bebiam o fim silenciosamente num jardim desconhecido.
O céu ondulava, como uma bandeira ao vento.
- Escolhe um rosto - Disse-me ela com o olhar.
E voaram no céu quartos vazios.
Senti na pele pequenos toques frios.
- Tinha saudades tuas - Disseram os lábios em silêncio na escuridão que os rodeava.
Permaneceu apenas o cheiro que relaxou o corpo.

Consciências cruzavam-se no corredor sem ínicio nem fim.
As paredes eram forradas com todas as palavras que existem.
- Diz-me quem fui - pediu o corpo sem vida estendido no chão.
Pouco a pouco os passos que se faziam ouvir desapareceram.
O silêncio que avizinhava o som sufocou a paciência.
- O próximo passo é teu.

As presenças escondidas invocavam a vontade que deixava o corpo cansado.
Como um íman de carga emocional.
- Mastigas-me?

Naquela mesa a essência feminina era mastigada sem pudor.