terça-feira, abril 25, 2006

A casa

Os pássaros chilreavam e o vento agitava as folhas das árvores que me rodeavam. Esta mente sonâmbula tinha vindo parar novamente ao bosque. As pálpebras pesam enquanto tento abrir os olhos e sair daqui como tantas vezes, em tantas manhãs o fiz. A última vez que saí de casa a dormir para acordar deitado à beira rio entre as mesmas rochas, fui acordado pelos escuteiros que costumam explorar esta zona. Riram mas pelo menos deram boleia até casa. Chego novamente à conclusão que nem vale a pena tirar a roupa antes do sono chegar se existe a grande possibilidade de acordar num outro local praticamente nu. Mas por outro lado é tão estranhamente belo como quase todos os meses acabe por acordar entre uma leve névoa que flutua acima do rio, perdido neste mato tão verde e silencioso ao ponto de conseguir ouvir os meus longos suspiros.
À ida para casa é que reparo no estado da roupa que levo. Com estas calças de ganga tão sujas e a camisa de flanela desbotada sou capaz de parecer um vagabundo que acabou de chegar à vila. Pouco me importa.
Os meus pais foram passar o fim-de-semana fora. Tenho que entrar pela janela da cozinha e aproveito para comer qualquer coisa enquanto vou reflectindo sobre o meu início de manhã. Volto ao meu quarto para observar durante longos minutos o tecto que fiquei a conhecer bem demais nas noites sem dormir que me tendem a perseguir. Deitado nesta cama, perco-me mais um pouco dentro de mim mesmo de novo numa viagem introspectiva. A dor do silêncio invade e traz-me a melancolia de uma alma que se magoa a si mesma. Tudo aquilo que possa existir em mim mata-me mais uma vez enquanto que fora deste quarto o mundo gira sem parar. Dentro de mim continuo a lamentar em quem me tornei. Da janela chega um grito que chama por mim. A Cely hoje resolveu visitar-me mais cedo. Trazia aquele cabelo preto despenteado, que tantas vezes já confessei como é realmente bonito e os olhos de quem ainda não tinha dormido uma hora. Convidei-a a entrar e viemos deitar-nos no chão do meu quarto partilhar este silêncio que tão bem conhecemos. Resolveu interromper aquele silêncio ensurdecedor com a pergunta – Que horas são? – E seguiu-se um ataque de riso descontrolado naquele chão que tantas vezes as minhas lágrimas salgaram. Acabámos por adormecer e acordei a meio de uma conversa entre o Gil e a Lisa. A Cely tinha ido tomar um banho a casa enquanto aqueles dois apareceram por cá. Acabei por lhes pedir um cigarro enquanto me sentei no chão a ouvir a música que me abstraía das vozes presentes neste quarto.
É como se o tempo parasse e apenas a minha existência se fizesse sentir. E numa fracção de segundo torno-me consciente de toda a minha vida até este exacto momento. Recordo momentos que vivi com o Gil, como aquelas noites em que decidíamos explorar as estradas velhas e cinzentas desta vila, acompanhados da nossa dor e da vontade de tudo largar. Ou com a Lisa, como aqueles intervalos na escola, que se prolongavam durante largos minutos atrás de mais um pavilhão, falando de tudo um pouco e de nada em particular, permanecendo apenas o conforto presente no ouvido de quem nos quer bem. São momentos como esses e muitos mais que fazem com que doa menos sentir o tempo desperdiçado que todos os dias tendem a trazer e alente estas pobres existências que não se enquadram em qualquer lugar que seja. Sentir tudo escapar entre os dedos, corrói à medida que o tempo vai passado. Talvez seja por isso que tenhamos a constante necessidade de nos abstrair de tudo aquilo que nos rodeia e em nós existe.
Decido fazer o almoço que se limita a uma simples sandes, que se segue de um cigarro e um banho. O Gil e a Lisa sabem perfeitamente que podem ficar no quarto o tempo que pretenderem, por isso decido ir visitar um local que conheço melhor que eu mesmo. O Gil disse-me que ainda devem lá estar o resto das bebidas da noite de ontem com a Lisa e a Cely. Costumamos ir bastantes vezes para as minas de carvão de S. Pedro que foram desactivadas à algumas décadas. Ficamos a falar e a beber, a fumar e a rir, entre as poucas paredes que se mantêm erguidas que tantas histórias por contar devem ter. É apenas mais um local que os adolescentes usam para libertar o peso do mundo das costas carregadas de dor.
Haviam beatas de cigarro e garrafas partidas numa daquelas divisões destruídas pelo tempo. A fogueira já estava apagada e a única coisa para beber tinha demasiado álcool para um início de tarde. Sento-me num colchão velho que eu e o Gil acabamos por colocar lá para as várias noites que lá decidíamos ficar e imagino a apatia dançar à minha volta. São projectados pequenos filmes no meu pensamento e nasce um pequeno sorriso neste rosto. Como a noite em que trouxemos mais de uma dezena de pessoas para transformar este local numa pequena festa sem razão aparente, onde existia apenas o conforto das jovens mentes sem rumo que se afogavam em álcool, desejando que o sol nunca mais nascesse. Neste momento, já com o sol bem alto, este local dorme para quando mais uma noite chegar, trazer de volta a magia que sentimos a cada noite que por aqui ficamos. Apenas eu, completamente sozinho num raio de quilómetros, entre este mato que me rodeia, estou aqui, agarrado a um passado que se mantém presente demais.
Passadas algumas horas e vários cigarros, algumas lágrimas e um ou dois suspiros, a Cely vem ter comigo e deita-se no colchão a resumir a noite de ontem, acabando por confessar com um pequeno sorriso o quanto precisa dessas noites que nos afastam de nós mesmos como nos conhecemos diariamente, que nos abrem a porta para uma liberdade sem limites e uma presença dentro de nós mesmos a que não estamos habituados. Viver não deveria ser um esforço. E sorrir deveria ser natural, não um acto automatizado. Hoje o mundo gira mais depressa. Viver não custa para quem não sente a realidade como ela é.
Numa conversa quase sussurrada com a Cely, revelo todos os meus medos, todas as minhas dores. A dor de ser quem sou espalha-se no ar enquanto alguém sente a minha alma. A tarde passa e os silêncios acumulam-se. Depois de tanta conversa e de um ou outro abraço, eu e a Cely resolvemos vaguear um pouco por perto destas minas. O céu começa a pintar-se de negro até que o Gil e Lisa aparecem. Acabamos por sentar os quatro a três andares do chão, tentando agarrar o tempo que teima em escapar entre os dedos.
A Lisa sussurrava uma música enquanto a Cely mantinha um olhar cabisbaixo enquanto fumava o cigarro. Eu e o Gil observávamos tudo aquilo que nos cercava e aos poucos íamos sentindo o conforto na angústia que em nós mora. Foi então que, entre o silêncio que se criou, o Gil acabou por dar a ideia de visitar a casa abandonada que á já algum tempo estamos para conhecer. Já tínhamos ouvido falar desse local e de algumas histórias que se espalharam por quem já lá entrou. A ideia era atravessar a zona de Couce e procurar a velha casa abandonada.
A noite já tinha caído quando decidimos sair das minas com as nossas mochilas que carregavam lanternas e algumas bebidas. Observámos o céu completamente estrelado à medida que caminhámos em pequenos trilhos de terra iluminados pelo forte luar. Fiquei para trás o suficiente para observar aquelas três pessoas envolverem-se na escuridão, com as suas sapatilhas sujas, as suas roupas «retro» e a sua vontade de viajar sem destino aparente, para longe de tudo aquilo que os lembre deles mesmos. Sorrio e acelero o passo. Ao longe faz-se ouvir o rio que corre sem parar enquanto a Cely e a Lisa vão imaginando como será visitar uma casa tão antiga. Todos sabemos que à alguns anos atrás, jovens como nós viajavam até lá e jogavam pequenos jogos capazes de assustar as mentes menos abertas. A nós, só nos interessava o sabor da aventura e o cheiro da apatia adolescente presente nesta noite que nos abençoa por tudo aquilo que (não) somos.
O Gil ficou sem bateria na lanterna dele por isso passei eu para a frente. Estava na altura de atravessar o rio. Um a um, dávamos um passo de cada vez em cima das rochas que nos serviram de ponte. Tudo à nossa volta era feito de sombras, apenas os pinheiros rasgavam o céu e as estrelas cintilavam como nunca tivera visto.
Reconheci o local por onde passamos, acordei lá hoje de manhã. Nunca pensei que estivesse tão perto do local que tantas vezes me tinham falado. O Gil reconheceu as quatro pedras alinhadas que lhe deram como ponto de referência e que formavam a entrada para o terreno da casa. Tudo à nossa volta eram ervas ou silvas, havia apenas um trilho de meio metro completamente cerrado. O Gil parou e agarrou o meu braço. Viu a sombra da casa ao longe. Ficámos os quatro a observar aquele sítio sinistro que estávamos prestes a conhecer sem sussurrar uma palavra que fosse e ao contrário do medo que talvez nos pudesse invadir, apenas surgiu a vontade de conhecer cada canto que o local abandonado tivesse para nos mostrar. Chegamos ao alpendre, consumido por ervas que se espalhavam pelas paredes e o telhado. A porta de madeira estava arrombada e havia um par de sapatos de mulher bastante velhos junto a uma mesa de madeira dentro do alpendre.
- Vamos? – Sugeriu a Cely depois do meu longo suspiro enquanto observava tudo o que me rodeava. Como segurava a lanterna, fui o primeiro a entrar, a madeira dava de si à medida que avançávamos entre a escuridão total. Tinha acabado de entrar na porta e reparava nas grandes teias de aranha que enfeitavam o tecto que por sinal ainda não tinha caído. O corredor era estreito e haviam molduras nas paredes, curiosamente, sem fotos. A madeira gemia enquanto a Cely, o Gil e a Lisa me acompanhavam lentamente até que parei por ter visto através da luz da lanterna uma divisão ao fundo do corredor. Encontrei uma sala apenas com uma mesa e duas cadeiras partidas. A lanterna pouco mais mostrava. Nas paredes estavam desenhados símbolos que desconhecíamos, provavelmente feitos por quem á uns anos visitou este local. A Lisa e o Gil começaram a explorar o resto da pequena sala enquanto eu e a Cely acabamos por nos sentar no chão com um olhar que foi capaz de transmitir tudo aquilo que pensávamos deste local sem abrir a boca. Estávamos fascinados. Pediram-me a lanterna. Encontraram um livro e a curiosidade matava-nos. O Gil começou a ler em voz alta e de imediato nos apercebemos que se tratava de um diário que começara em 12 de Julho 1962.
«Eu e Rosa acabamos de chegar do Porto e de conhecer mais ruas daquela cidade cinzenta. Os automóveis estragam o ambiente da minha cidade natal. Fomos até a um restaurante comer qualquer coisa e como sempre saímos sem pagar. Rimos vezes sem conta sempre que nos sentimos vivos à medida que vamos viajando por aí, conhecendo novos lugares e novas pessoas. Comprei-lhe uns sapatos para substituir aqueles que ela estava sempre à espera de trocar. Os olhos brilhavam de alegria, adoro ver o sorriso deste meu amor. Amanhã partimos para S. Pedro da Cova, vamos visitar o povo mineiro e quem sabe arranjar um emprego por uns meses. Só o tempo dirá para onde iremos depois.»
Começava assim a segunda página do diário que tínhamos acabado de encontrar e todas as outras páginas que se seguiram, foram suficientes para entendermos que se tratavam de um casal que sorrimos ao imaginá-los viajar. Viajavam por toda a parte, de qualquer maneira, procurando algo que também não sabiam descrever muito bem, assim como nós o fazemos cada vez mais. E rimos. Esta casa foi provavelmente a última paragem deste casal que vivia a vida de um modo que pouca gente um dia poderá conhecer. Décadas depois, estão aqui mais quatro jovens, desejosos por largarem o travo amargo da melancolia, viajando em plena noite, por várias cidades, arrastando com eles quem deseje segui-los.
Assim como aquele casal, queremos largar esta angústia que nos corrói, esta vida automatizada que nada nos diz, este desespero que nos consome diariamente. Por momentos sentimo-nos abençoados por ser quem somos e enquanto nos olhamos em silêncio esboçamos um sorriso que esvanece na escuridão. Tinha acabado a última bateria da lanterna e sinto um leve suspiro junto ao meu ouvido.
Mas nenhum de nós suspirou.

5 comentários:

Anónimo disse...

deves tar a precisar de formatar o disco cmo o meu pc.
e cmo eu.
mas olha.
eu gosto de ti. es dakeles amigos, amigos... a serio.
k eu gostava de ter smp aki e nao tenho.
vi a carripana perfeita pa nós todos.

João Blümel disse...

Bruno! Desculpa o meu "atraso" em vir aqui comentar...de facto há várias coisas a assinalar...:)
Primeiro que tudo dizer-te que estou disponivel para a tal reprogramação! Quando quiseres avisa! tens o meu msn no blog, é so adicionar.
Depois dizer que gostei mais deste texto que dos outros todos...apesar da habitual melancolia, creio que está patente um pouco de alento e vontade de mudança:). E isso é óptimo! É o primeiro e mais dificil passo nos processos de mudança - saber reconhcer os nossos problemas e estar disposto a enfrentá-los e resolvê-los. Claro que também falas de fuga...e realmente esse é sempre o caminho mais fácil...fugir...e todos nós já incorremos nesse erro...mas é no errar que se constrói a evolução:).
E pronto..é só isso...o sonambulismo tem cura, by the way;). Através de hipnoterapia...e já tou a falar muito...um abraço!

;)

Klatuu o embuçado disse...

Já arranjaste dinheiro para os bilhetes de autocarro? Já fugiste de casa? Já te mataste? Pá, és um bom escritor e uma decepção como ser humano... nada cumpres do que prometes!

Faz o seguinte: arranja um trabalho... e depois foge de casa... para a tua!
Compra um carro... ou uma mota, em 2ª mão ficam baratas... deixas de precisar de bilhetes de autocarro!
Depois, se te quiseres matar... mata-te, pá! Mas, um pouco antes, viaja!

Entretanto... não páres de escrever. Gostamos de ler-te.

Rosentau disse...

Gostei...sinto-te imenso nos teus textos e sinto-me imensamente ligada ao íntimo suspiro que deles se emana.

Anónimo disse...

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