segunda-feira, março 07, 2005

Os Meus Dias

Já não me recordo da última vez de ter visto o sol nascer. Ou pelo menos acordar a horas para qualquer coisa. Hoje em dia tenho tanta dificuldade em acordar e encarar o dia. Existe uma dificuldade inexplicável que me impede de levantar quando acordo pela manhã. O sono é tão pesado, que o corpo não aguenta e fico preso literalmente em sonhos muito estranhos. Como imaginar o meu dia a decorrer ou uma situação que normalmente seria impossível como tomar um duche quente numa floresta com o som de carros que passam na via rápida mesmo ali ao lado.
Depois de ultrapassada a dificuldade de acordar, perder bastante tempo num duche com fim meditativo e de uma pequena conversa mental com a imagem que todas as manhãs o espelho me mostra, fecho a porta da entrada e ligo os auriculares. De repente vejo tudo a cores novamente. Tenho-me irritado com a facilidade que adormeço a pensar no autocarro, algo muito notório para quem normalmente me apanha no autocarro já muito atrasado para a primeira aula da manhã. Com os auriculares ligados e sem qualquer som exterior, a minha mente acede a momentos que me deixam ainda mais envolvido comigo mesmo e o processo de me levantar para apanhar o próximo autocarro é praticamente automático.
Começo a sentir-me preso a esses momentos também porque muito raramente tenho uma boa conversa com alguém. Sim, porque o que normalmente acontece é: ou não dizer coisa com coisa, ou simplesmente falar de coisas que não interessam a ninguém. E os únicos momentos em que me sinto bem comigo mesmo, são aqueles que vêm acompanhados de uma banda sonora definida por mim.
Sei também que estas linhas para determinadas pessoas são apenas mais umas linhas num blogue, mas para mim é o meu dia a dia. Ficar vários minutos com o olhar na janela do autocarro e com o meu pensamento a bater á porta do subconsciente acompanhado de uma determinada música que através das suas notas me farão imaginar, criar, recordar, um momento, uma situação, uma morte, um nascimento, uma noite, uma manhã, um simples segundo que nunca mais acaba. É o meu dia a dia. Talvez eu devesse reparar mais nas raparigas que entram no autocarro do que na discussão que o casal que parou no semáforo ao lado do autocarro está a ter. No modo como o homem ao volante agita o seu dedo indicador e a mulher se justifica gesticulando com as mãos cheias de anéis. Na maneira como o gato preto brinca com o gato branco em cima do muro. Na maneira como a mãe arrasta o filho pelo passeio com a pressa de cometer adultério. Ou no modo como o músico de rua toca e canta enquanto foca o seu olhar no chão. Talvez sejam detalhes que existam para pessoas sem vida própria repararem. Eu vivo de detalhes.
Vivo do detalhe do dó, do ré, do mi, do fá, do sol, do lá, do si e dos seus tempos possíveis e imaginários. Alimento-me dos pormenores que os detalhes sonoros introduzidos nos meus tímpanos e identificados pelo meu cérebro me fazem observar. De um modo romântico ou melodramático. Com uma angustia menos falsa que a do adolescente comum ou uma carga sentimental mais pesada para a maioria das pessoas que vêem sua vida um sacrifício.
Talvez seja o peso do dia anterior que custe a levantar na manhã seguinte.

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